Didier Delamonica
O ano de 1835 não prometia trazer em seu rastro
luminoso de cometa todos os sortilégios, amores e desgraças que nos trouxe.
Quando a décima segunda badalada do relógio da sala de nossa casa soou,
cortando a noite fresca e estrelada como uma faca que penetra na carne tenra e
macia de um animalzinho indefeso, nada no mundo se pareceu travestir de outra
cor ou essência, nem os móveis da casa perderam seus contornos rígidos e
pesados, nem meu pai soube dizer mais palavras do que as que sempre dizia, do
seu lugar à cabeceira da mesa, olhando-nos a todos nós com seus negros olhos
profundos que hoje já perderam há muito seu viço, a sua luz e a sua existência
de homem do pampa gaúcho que sabiam medir a sede da terra e a chuva escondida
nas nuvens. Quando o relógio cessou de soar o seu grito, a voz de meu pai se
fez ouvir: “Que Deus abençoe este novo ano que a vida nos traz, e que nesta
casa não falte saúde, alimento ou fé.” Todos nós respondemos: “Amém”, erguendo
bem alto nossos copos, e nisso não houve ainda nada que pudesse alterar o curso
dos acontecimentos que nos regiam tão dolentemente os dias naquele tempo.
(Letícia
Wierzchowski, no livro A casa das sete mulheres)
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